sábado, 30 de junho de 2018



Hoje vesti-me da minha mais misturada ambiguidade de cores e tropecei nisto.

"Mas o medo da loucura, Jeanne, só o medo da loucura nos levará a ultrapassar as fronteiras invioláveis da nossa solidão. O medo da loucura destruirá os muros da nossa casa secreta e projectar-nos-á no mundo à procura de contactos ardentes.
Os mundos autoconstruídos e alimentados em si próprios estão cheios de fantasmas e de monstros.
Conheço apenas o medo, é verdade, tanto medo que me sufoca, que me deixa a boca aberta mas sem fôlego, como alguém a quem falta o ar; ou noutras alturas, deixo de ouvir e fico subitamente surda para o mundo. Bato os pés e não ouço nada. Grito e não percebo nem mesmo um pouco do meu grito. E também às vezes, quando estou deitada o medo volta a assaltar-me, o terror profundo do silêncio e do que poderá sair desse silêncio para me atingir e bata nas paredes das minhas têmporas, um grande, sufocante pavor. Eu então bato nas paredes, no chão, para acabar com o silêncio. Bato, canto, assobio com persistência até mandar o medo embora.

Sempre que me sento em frente de um espelho troço de mim própria. Escovo o cabelo. Vejo dois olhos, duas longas tranças, dois pés. Olho-os como se fossem dados num copo, à espera de que os sacuda, para que ao saírem se tornem EU.
Não sei dizer como todas essas peças separadas conseguem ser EU. Eu não existo. Não sou um corpo. Quando estendo a mão a alguém, sinto que a outra pessoa está longe, como se estivesse noutro quarto, e que a minha mão também lá está. E quando me assoo receio que o meu nariz fique no lenço.
Voz-melro cantante. Sombra da morte correndo atrás de cada palavra para as fazer secar antes que as acabe de dizer.
Quando o meu irmão se sentou ao sol e a sombra do seu rosto ficou projectada nas costas da cadeira, beijei a sua sombra. Beijei a sua sombra e esse beijo não o tocou, beijo perdido no ar, fundido na sombra.

O amor de um pelo outro é como uma extensa sombra que se beija, sem qualquer esperança de realidade.
"

anaïs nin
a casa do incesto



No fundo, e eis a banalidade desinteressante, somos o que somos, porque fomos, mesmo quando não queremos interiorizar aquilo que já fomos e que tentamos esquecer.

Sem querer, damos murros em pontas de facas e como se não chegasse, ainda voltamos ao cemitério só para deixar flores a um qualquer traste que nos dizimou.
(Aposto que Freud teria muito  dizer sobre isto!...)




quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Não quero fazer parte desta raça


Como não tenho máquina fotográfica capaz de captar o que sinto, deixo esta imagem feita de palavras, que a ter título seria: "Não quero fazer parte desta raça".

Na casa onde cresci ensinaram-me que o sofrimento dos outros é real, tão real quanto o meu, que o que não gostamos que nos façam, também não podemos fazer aos outros. Estes são os apanágios da minha educação.
Cresci então com uma sensibilidade infantil e uma moral de mãe; não, não é a moral de um adulto, é uma moral materna, que parecendo, são coisas diferentes.

Não, não consigo olhar para a horrível fotografia de uma criança (da idade da minha filha mais nova) morta, na areia de uma praia, porque morreu afogada. Já alguém foi ler sobre o que é morrer afogado?

Não consigo olhar sem ficar realmente emocionada para aquela imagem.
Não consigo olhar!! 

Não consigo conceber como é que alguém é capaz de dizer que não!
Por outro lado, também não concebo que venham TODOS para a Europa, não é porque não temos dinheiro, espaço físico ou capacidade de encaixe para culturas tão diferentes. É porque acredito que se pode fazer alguma coisa nos países de origem, a fim de proporcionar uma qualidade básica aos seres humanos - humanidade!

Não compreendo como é que não conseguem salvar os MILHÕES de pessoas que morrem afogadas, asfixiadas, entre outras piores, para chegar a um sítio qualquer onde, não haja o perigo de cair uma bomba em cima da cabeça deles (porque casas, já não há!), onde um pão custe menos que 10€, por exemplo, ou onde, simplesmente, se possa dormir...


Não, eu não quero e recuso-me a pertencer a este mundo. 
Não, eu não quero e recuso-me a calejar a minha sensibilidade em prol de conseguir olhar. 
Não, eu não vejo, fecho os olhos, no entanto, imagino...



terça-feira, 18 de agosto de 2015

Desabafos



Não há capelas de rosas
virginais originalidades em garrafas
fumo polido pelos dias.
Não há nada. Disto
ou daquilo
existe um só objecto da escrita.
Tu. Coisa minha.
De mim e meu.
O resto não é paisagem,
são ornamentos pendurados
os dias, oxidam o quadro.
Nunca foi interesse fazer boneca perfeita.
Nem de boneca,
nem de perfeita.
A coisa em si,
objecto da escrita só existe
se
houver quem o escreva,
perdido na substancial essência incompreensão,
nem vale a pena perder ou
guardar na memória. É intrínseco ao próprio acto da escrita.


É existir paralelamente à realidade
fisicamente incontactável
do teu pescoço.




quarta-feira, 29 de julho de 2015

O que os olhos não ouvem

No dia em que mais nada conseguir fazer, vou escrever um livro sobre a estupidamente significante podridão humana, ao mesmo tempo que entrelinho, borboletas a esvoaçar por ter ouvido, da janela do quarto das leituras, um senhor que ao passar na rua, assobiava Coltrane. 

Esta dificuldade em ser crente no homem, como indivíduo, e paradoxalmente uma indestrutível fé romântica e ingénua em Coltrane...


terça-feira, 14 de julho de 2015

maternidade



Criar um filho e ter um filho são coisas bem diferentes.
Ter um filho é um acto infinito e perpétuo.
Criar um filho é prepará-lo para a guerra, com ou sem balas.
É trair o próprio acto em si da criação.

Destiná-lo a ser cada vez menos e mais longe o que uma vez se teve perpétuamente, e desejar com todos os ossos partidos, que este nunca seja o dele. É viver depois de ter um filho numa solidão imensa de mãe, que ralha, castiga e à noite desenha universos imensos de perder de vista, enquanto em segredo, a coberto do sono pequenino, se abraça aquele filho, tido, muito, sem nunca ter vontade que nasça.



quarta-feira, 8 de julho de 2015

Espelho

É uma ampulheta o tempo ausente
estradas de linhas que são o teu corpo.
Conversa aqui e ali ao longo de verdes 
e flores por ti assinaladas. 
O desejo estende-se numa saudade 
volta ao mundo em balão.



São os teus olhos em todo o lado 
e o teu pensamento 
sobrevoa-me como uma neblina que distorce a luz.

Fica tudo da mesma cor
as palavras ecoam em todas as arestas onde se partem 
infinitos cintilantes fragmentos 
dispersam-se 
invisíveis por toda a cidade. 

Todas as pessoas são iguais a ti
a cidade mais não é que o teu reflexo.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

por falar em Eugenio de Andrade

Porque nem só de cartas se fazem os dias e a poesia é como o cigarro- distrai-me, diariamente e várias vezes ao dia. É como o pensamento: todos os ventos me levam a ti.