quarta-feira, 31 de julho de 2013

Gostaria de descrever - Zbigniew Herber




"Gostaria de descrever uma emoção simples
como alegria ou tristeza
mas não como os outros fazem
socorrendo-se de restos de chuva ou sol

Gostaria de descrever uma luz
que começa a nascer em mim
mas que sei não se assemelhar
a alguma estrela
pois não é tão brilhante
nem tão pura
e é incerta

Gostaria de descrever coragem
sem arrastar atrás de mim um velho leão
e também ansiedade
sem entornar um copo de água

para dizê-lo de outra maneira
desistiria de todas as metáforas
em troca de uma palavra
retirada do meu peito como uma costela
uma palavra
nascida dentro das fronteiras
da minha pele

mas aparentemente isso não é possível

e só para dizer – amo
eu ando às voltas como um louco
à procura de mãos cheias de pássaros
e a minha ternura
que apesar de tudo não é feita de água
pede água para a cara

e a raiva
diferente do fogo
pede-lhe emprestado
o tom eloquente

está tudo obscuro
está tudo obscuro
em mim
que homem de cabelo grisalho
irá separar de uma vez por todas
dizendo
isto é a essência
e isto é a matéria

adormecemos
com uma mão debaixo das nossas cabeças
e com a outra em inúmeros planetas

os nossos pés abandonam-nos
e entram na terra
com as suas pequenas raízes
que na manhã seguinte
arrancamos com dor"


Zbigniew Herbert, «I would like to describe», em The Collected Poems: 1956-1998, Ecco: 2007.



terça-feira, 23 de julho de 2013

Waterfall - Torres


Pra sempre o toque no teu ombro
e a marca confusa na roupa da cama
os dedos perdidos nos dedos
a flor que pedes
o repouso quieto teu peso no colo
o jazz no rádio
luz que prespassa o copo de marguerita
para sempre os livros que largas desarrumados
o perfume verde e a cerejas nas roupas caídas
o meu nome na tua boca
os olhos encharcados de ti
abertos ou fechados.

By água das pedras








Veio devagar em bicos dos pés como as crianças e sentou-se na barriga do mundo dos pés da cama á espera que o sono vagasse o lugar ao acordar, para depois sorrir e dizer bom dia, sem roupa, como quem acaba de nascer.

by bica curta


segunda-feira, 22 de julho de 2013

The Beaver



No fundo não existimos, somos teimosamente ancorados à imagética de uma realidade fictícia residual elaborada pela utopia do amor.
No fundo não vivemos, arrastamos-nos barulhentos e pesados pelas correntes e o pior é que não sabemos viver sem elas.

Mas quem? Quem é que foi o cobarde que nos disse que éramos livres?
E ai de mim, de ti ou até de nós que tentemos ser livres. Seremos presos por nós próprios e confinados ao cárcere da nossa solidão assistida.

O Castor é que tinha razão, só mesmo cortando a própria mão.







Florbela


De ti sobraram as lâmpadas da noite no horizonte da planície. 
Guardei no entanto as papoilas usadas entre as letras dum livro que me ofereceste.
Que modo parvo de guardar a memória com cheiro a sentimentalismo barato. 
A julgar pelo aspecto gasto deveria imaginar as décadas das tuas mãos, mas não, prefiro guardar no horizonte a memória barata dum livro gasto.

Sento-me com a Florbela e aceno com a cabeça o quão pobres somos. As mesmas, sempre, para dizer várias coisas. 

Velhas e gastas, Florbela, velhas e gastas...


quinta-feira, 18 de julho de 2013

Fotografia



Da vala do amor bebo
reflexo do corpo ondulado
sem sede cedo
inevitabilidade do fado.


- Essa tua mania de andares em casa em t-shirt e em bicos dos pés, de apanhares o cabelo e espreitar as tuas nádegas entre o opúsculo das tuas coxas torna-se numa necessidade imperial de te morder os braços.

domingo, 7 de julho de 2013

Sei-te de pés frescos sobre a relva


Tocaste o chão
braços compridos, andas de ingenuidade
um andar reflexivo, lascivo
amparo-te com o olhar
trago a tua marca
guardo o reduto
enleamos as sombras
e o calor abre às estrelas o céu
espreitamos
elevamo-nos de máximos ligados
mais depressa que a luz
a relva molhada é sempre fresca
sabem-no os pés que a pisam.





Arte



Foram as palavras criadas
do pó e do éter pensado
descodificado o mundo
e os mistérios revolvidos
acima de ti e de mim a Arte
Helénicos e Gregos trovadores
a encenar o súbtil, as lágrimas e o sangue
o ciúme e a paixão
os mitos e as Deusas
templos de multidões
espetáculos e a eternidade
é preciso incendiar esse chão que pisam
imular os obscurantistas
e elevar o espírito que nos precede 
e faz de nós a praia mais iluminada 
aqui a Ocidente.

sábado, 6 de julho de 2013

Cor de tudo e nada de cor de tudo e nada de cor



O chão branco-eterno jogava às escondidas com o sol debaixo das sombras irrequietas. Os pássaros cor de castanho-finito poisavam sobre as árvores verde-musgo-eterno. Havia um sossego espesso que a enrolava num manto azul-céu-infinito que ela provava com as pestanas.
Pensava que se ficasse estátua branca-eterna o chão havia de crescer como as trepadeiras pelos pés e pernas brancas-finitas, que o sol havia de a transformar em castanho-finito e que as árvores verde-musgo-eterno haveriam de se debruçar sobre a estátua branca-finita.
Pensava que se ficasse cor de tudo podia ficar invisível-transparente e que a vida espessa que a enrolava num embalo sossegado a conservaria intacta-fóssil até que ele, feito de chuva e vento, reparasse que o mundo de repente se tinha cansado de fazer todas as coisas de mundo.
Morreu aos 22 anos intacta-fóssil, sentada numa pedra cor de musgo.
O mundo não parou e ele não choveu.