segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Bairro Alto


travessas morenas
numa calçada escura
evitar as irregularidades
naquela esquina, uma luz
o som que traz o sabor do rum
o conforto do sossego no meio dos outros
para ficar sozinho e poder pensar-te
ver-te, faz-me falta ver-te
e o teu pedido para acender um cigarro
depois consigo ter o verde dos teus olhos
escutar só o teu murmúrio
e a textura do arrepio em ti
dividir em fotogramas o contorno do teu pé
e como calcas o chão com os teus saltos altos
rodas a cabeça e fixo o teu sorriso de menina
na minha pele limpa nada marquei
o ferro quente indelével queima ainda
no fumo podes ler
todas as palavras que são tuas
é nelas que me deixo






Título de jornal: "Património natural ameaçado por especulação"



treme o cigarro compulsivamente contra o cinzeiro aborrecido
vascolejas opinativas respeitabilidades estatísticas do falecido
21 gramas é o que se esfuma. heurísticas
subtraídas à instrução ignorante da negligência de viver
apagas o vicio enervado passivo funeral
contra o pano de fundo da mediocridade
e definhas folhas de silêncio
em decrescente contentamento melancólico
porque o pensamento é um alcoólico
em vias de extinção
cancro em remissão
na Lei Seca da liberdade.


quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Incautos ressaltos cadafalsos



para beber em tragos de assaltos
abriu-se uma fenda no corpo do chão
o cheiro lembrou-se do coração
desapartou-se inquieto do afecto
mandou pegar fogo ao concreto e às urtigas
a comoção.

líquido insecto, que de resto, não digerido
provoca ulceras no estômago do pensamento.

quanto ao mais, que se foda!


terça-feira, 24 de setembro de 2013

Igor Stravinsky e eu



Se mergulhar de repente
como quem faz música por dentro da tua pele
rasgar-te-ei pautas
sem Dó.
enquanto é tempo,
não sei se aguento:
comer-te as entranhas por dentro
desarranjar partituras
graves profundidades
de agudos
só.


O destino



Numa tangente a uma curva
num ponto
onde nos podemos mover, imóveis
o espaço em volta
são os passos de volta
disseram do paradoxo
inventámos a solução
gato morto e vivo, a simultaniedade
estamos na mesma espiral
o encontro uma inevitabilidade
fusão atómica de atmosferas sob altas pressões
espasmo de néons, encadeados na luz
ébrios no vinho
puros na água
caminhámos tanto até aqui, mesmo que quietos
os pés doídos, como se tivéssemos percorrido o mundo todo
os papéis dispersos, agora juntos numa gaveta
o esboço
palavras e versos, ideias
o pranto floriu ode, harmónicas subliminares
a urdirem-nos numa hipérbole de nós, para nós.






segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Espelho





Nós! Amantes.

A embriaguez dos Amantes
o rasto que se deixa na areia
corpos voláteis matéria prima da paixão
de um triângulo rodado um dodecaedro
a possibilidade de todos os ângulos
a luz contida, míriades de reflexos.

Eu o teu espelho
tu o meu
nós um espelho
ela do espelho
ele no espelho
tu espelho
nós um espelho
nós, espelho.
Nós!


Exercício de conversação enquanto vejo as notícias na televisão



Arraigado no meu coração mora um grilo de nome Trovão.
todas as noites canta e acorda o vizinho de cima,
faz largar beijos a escorrer pelos dedos.
às vezes maltrato-o, sustenho a respiração durante muito tempo
até as estrelas estarem dentro dos meus olhos .
ele é pérfido e perverso, mastiga a moral mundana com seiva de puta.
disse-me um dia que o fazia só para me castigar,
que eu tinha de aprender o que ainda existia de bizarro.
às vezes batia-lhe à porta de casa, aos murros opacos
e de manhã acordava com o coração negro.
pensava eu que seriam farpas, mas não,
o grilo nascia mais um bocadinho.
Ele, resiliente e obstinadamente, à noite, dava-me insónias de verão.


segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Para além de todas as coisas, 
existe na sombra dos teus joelhos 
os lençóis amarrotados dos teus desejos 
entre a almofada do ventre quente.
Trinco-te 
o lábio e sussurro
dentro da tua boca
o desassossego da minha espera
enquanto te toco ao som 
da minha saudade.

sossego




adormecer por entre pernas e braços
exaustos.
prefácio obscuro de uma misantropia premiada
em ínsulas mornas de sono estendido.


(lá fora discutem a dureza longa da miserável escravatura dos dias exauridos em vinganças medíocres.)



sábado, 7 de setembro de 2013

Estorvo arrepio


Foi um estorvo, arrepio
as palavras inquietas
o salto num abraço a esconderes o rosto envergonhada
um beijo rebuçado como desculpa
e juntas os teus lábios aos meus
estalas-me a pele, insuportável comoção
os olhares cruzados, sempre de noite,
porque aqui levantamos parede e conjuramos o dia
aniquila-se tudo, cessa o mundo
o tempo em pó
contemplamos a locomotiva da luxúria
numa viagem ópio
sangramo-nos
em luta ou em valsa,
somos nós, do início da vida
mar repleto, incessante,
suspiro e sorriso escrito com cinco palavras
três nomes, esguios e redondos, fechados
e temos a presença aqui, ali, num lado e no outro do espelho
sublime ausência sempre de frente para o mar.







terça-feira, 3 de setembro de 2013

(m)ar



permanece pena pairando
no ar ondulando
as pernas
e a seguir andar
de gatas pena ondulando
permanece pairando devagar
morrer à fome
em pleno mar


pairando as pernas
brandura insónia
ondulando pena boca
de gatas permanece sem ar






segunda-feira, 2 de setembro de 2013

aRTE



Foram as palavras criadas
do pó e do éter pensado
descodificado o mundo
e os mistérios revolvidos
acima de ti e de mim a Arte
Helénicos e Gregos trovadores
a encenar o súbtil, as lágrimas e o sangue
o ciúme e a paixão
os mitos e as Deusas
templos de multidões
espetáculos e a eternidade
é preciso incendiar esse chão que pisam
imular os obscurantistas
elevar o espírito que nos precede
e faz de nós a praia mais iluminada
aqui a Ocidente.




Avesso



Tocaste o chão
braços compridos, andas de ingenuidade
um andar reflexivo, lascivo
amparo-te com o olhar
trago a tua marca
guardo o reduto
enleamos as sombras
e o calor abre às estrelas o céu
espreitamos
elevamo-nos de máximos ligados
mais depressa que a luz
a relva molhada é sempre fresca
sabem-no os pés que a pisam.




O eco



Podia escutar o silêncio. A filigrana das partículas do ar, tocando-se num rumor que era só um leve sopro. Falaste-me ao ouvido com as palmas das mãos viradas para cima e o rubor rosa na tua face, não me tocaste com os cabelos mas sabia-os pimenta preta. O eco deixou-as mais um instante a rodopiar e escuto-as desde então.
Vagos e desfocados momentos esmaecidos no vívido orgânico verde dos teus olhos.
Trago comigo esse eco-silêncio onde as tuas palavras se insinuam e se constituem o desenho de ti.







Manoel de Barros & Edgar Varese


"A disfunção

Se diz que há na cabeça dos poetas um parafuso de a menos
Sendo que mais justo seria o de ter um parafuso trocado do que a menos.
A troca de parafusos provoca nos poetas uma certa disfunção lírica.

Nomearei abaixo 7 sintomas nos poetas dessa disfunção lírica.

1 - Aceitação da inércia para dar movimento às palavras.
2 - Vocação para explorar os mistérios irracionais.
3 - Percepção das contigüidades anômalas entre verbos e substantivos.
4 - Gostar de fazer casamentos incestuosos entre palavras.
5 - Amor por seres desimportantes tanto como pelas coisas desimportantes.
6 - Mania de dar formato de canto às asperezas de uma pedra.
7 - Mania de comparecer aos próprios desencontros.

Essas disfunções líricas acabam por dar mais importância
aos passarinhos do que aos senadores."


De: Manoel de Barros, Tratado geral das grandezas do Ínfimo





Contemporâneos e modernistas, ambas as obras escritas na primeira metade do Séc. XX.

Eis o desafio aos sentidos, ao pensamento, à abstracção, à concentração, à pesquisa.
Eis o desvio à norma e ao facilitismo.
Eis o trilhar de novos caminhos e citando John Cage :

"Eu não quero ultrapassar o muro, quero derrubá-lo".
John Cage



O Belo não pode ser sempre uma mesma coisa. Temos de desafiar a nossa percepção, os sentidos, as emoções e o racional. Temos de saltar no abismo. Parar e escutar por mais de 3 minutos. Ler mais que uma frase.







domingo, 1 de setembro de 2013

Veneno



Rasteja até mim.
Subrepticiamente surpreende-me
no altar de ti inocular o teu veneno
segurar-te entre as mãos
curvas e linhas
assimetria do ébrio
desventrar-te num impulso insane
e morrer num esgar de prazer
nesse lugar de tudo e de nada
hipotálamo do inominável
são as veias acossadas
ocre veludo vício veneno.
Rasteja até mim.