sexta-feira, 30 de maio de 2014

Gagez iliteracia e a futilidade do passado



ver bem de perto
tão perto
tão junto à retina
que as coisas deixam de ser
externas. As coisas
perto
muito perto
tão perto que passam
por nós e em nós
ficam.
Engolir as coisas de perto
e num aperto tornar a água
o afogamento tão perto
muito perto
que deixar de ser
externas. As águas
que engolimos perto
do que vemos
tão
de
muito
perto.

Certo?

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Nós estamos aqui - a Ruy Belo


“Tu estás aqui

Estás aqui comigo à sombra do sol
escrevo e oiço certos ruídos domésticos
e a luz chega-me humildemente pela janela
e dói-me um braço e sei que sou o pior aspecto do que sou
Estás aqui comigo e sou sumamente quotidiano
e tudo o que faço ou sinto como que me veste de um pijama
que uso para ser também isto este bicho
de hábitos manias segredos defeitos quase todos desfeitos
quando depois lá fora na vida profissional ou social só sou um nome e sabem o que sei o
que faço ou então sou eu que julgo que o sabem
e sou amável selecciono cuidadosamente os gestos e escolho as palavras
e sei que afinal posso ser isso talvez porque aqui sentado dentro de casa sou outra coisa
esta coisa que escreve e tem uma nódoa na camisa e só tem de exterior
a manifestação desta dor neste braço que afecta tudo o que faço
bem entendido o que faço com este braço
Estás aqui comigo e à volta são as paredes
e posso passar de sala para sala a pensar noutra coisa
e dizer aqui é a sala de estar aqui é o quarto aqui é a casa de banho
e no fundo escolher cada uma das divisões segundo o que tenho a fazer
Estás aqui comigo e sei que só sou este corpo castigado
passado nas pernas de sala em sala. Sou só estas salas estas paredes
esta profunda vergonha de o ser e não ser apenas a outra coisa
essa coisa que sou na estrada onde não estou à sombra do sol
Estás aqui e sinto-me absolutamente indefeso
diante dos dias. Que ninguém conheça este meu nome
este meu verdadeiro nome depois talvez encoberto noutro
nome embora no mesmo nome este nome
de terra de dor de paredes este nome doméstico
Afinal fui isto nada mais do que isto
as outras coisas que fiz fi-Ias para não ser isto ou dissimular isto
a que somente não chamo merda porque ao nascer me deram outro nome
que não merda
e em princípio o nome de cada coisa serve para distinguir uma coisa das
outras coisas
Estás aqui comigo e tenho pena acredita de ser só isto
pena até mesmo de dizer que sou só isto como se fosse também outra coisa
uma coisa para além disto que não isto
Estás aqui comigo deixa-te estar aqui comigo
é das tuas mãos que saem alguns destes ruídos domésticos
mas até nos teus gestos domésticos tu és mais que os teus gestos domésticos
tu és em cada gesto todos os teus gestos
e neste momento eu sei eu sinto ao certo o que significam certas palavras como a palavra paz
Deixa-te estar aqui perdoa que o tempo te fique na face na forma de rugas
perdoa pagares tão alto preço por estar aqui
perdoa eu revelar que há muito pagas tão alto preço por estar aqui
prossegue nos gestos não pares procura permanecer sempre presente
deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias
e eu saber que aqui estás de maneira a poder dizer
sou isto é certo mas sei que tu estás aqui"

Ruy Belo
Toda a Terra
Todos os Poemas







Normalmente sei sempre o que dizer, mas neste momento nada mais me ocorre que a húmida dor do que somos, nus.
Um dia escrevi "a possibilidade de ser precisamente aquilo que se pretende", hoje em dia escreveria talvez a impossibilidade de ser precisamente o que somos, mas no entanto, como o Al Berto, damos as mãos perante a ruína da cidade. Ao fundo os neons da memória resgatam os gestos de cinza que entornamos ao rio. De mãos dadas, nus, porque seria impossível ser de outra maneira que não permanecer à margem na esperança que venha a maré.
Na maior ironia dos dias, é à noite que escrevemos melhor.

Seremos portanto os filhos da realidade.





Por: bica curta E água das pedras




terça-feira, 27 de maio de 2014


Já não consigo conter a chuva 
nem a foz desnuda de um rio anónimo.
Não seguro o sol nas mãos 
nem o canto dos pássaros que sobem a manhã apertada.

O que fazer quando a barragem de papel se desfaz à humidade da solidão?

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Vício


Tirar o teu nome do bolso
vagarosamente
usar-te em vários tons:
- quentes
e consumir-te compulsivamente até à overdose

terça-feira, 20 de maio de 2014

Recomendações de leitura

Ler poesia na rua, ao relento e à chuva
amplia o mundo e as asas do leitor.

Recomenda-se vivamente
que pelo menos um livro contenha:
uma gota de chuva
um raio de sol
uma página virada pelo vento
e que o marcador seja,
no mínimo,
uma folha.

Tudo o resto pode
e deve
ser ingerido 
sem moderação.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Grande



Sobressaltou-se a cal
entristeceu debaixo do casaco cor de abismo
e de tão pequenina desmaiada
o céu escuro vermelho quase preto
sem no entanto descobrir
contra a faixa azul mal pintada
onde estariam as estrelas

do cinzeiro cor do que já foi
mexeu-lhe o vento por dentro os pensamentos
até se desfazerem contra os lírios
quase murchos
cor de muitos dias

(As pequenas lagoas de laranjas
trazem dentro delas o fumo
a sombra
o som e
a saudade)

os discos e os livros e os cadernos
as memórias dentro duma caixa
a casa, o cinzeiro, as flores e até
imagine-se! – a luz acesa
tem tudo a sombra com cheiro de muitos dias

abri todas as janelas
os cortinados à espreita desvairados
contra o azul e branco
o pó e a luz como um rolo fotográfico encenando memórias
e eu, que me sentei à mesa
agasalhei-me com um casaco escuro
vermelho
quase preto
à espera da noite
à espera de mim.


Sonhámos alegres campos muito largos
com a amplitude dos braços abertos
com palavras e olhos enternecidos
tecemos o abrigo de nós

mas o que nunca ninguém disse
do inesperado silêncio caótico cheio de coisas:
a idade faz dos nossos braços coisas muito pequenas
e dos pássaros, as penas desprendem-se a cada voo.

O que fazer agora com o mundo encolhido?
tão estreito e esguio que nos braços,
outrora nossos, nascem campos alegres e sonhos largos
de outras paragens?

Note-se, não se pensa aqui de outras sombras, mas de mundos inteiros de luz,
quântica pura, universos paralelos como fragmentos de personalidades esquizóides
- nunca se tocam e não se recordam de coisa alguma,
nem de tudo, nem de nada.

Será que se abrir muito a boca
se partir dos lábios uma borboleta
ela vai poisar no teu nariz?

Sem remédio – digo eu distraída –
como quem finge acreditar na estatística…
seria talvez mais fácil morrer que viver ao largo da tua ilha…
mas o que possa fazer, honesta e francamente,
nada mais sei, ou quero fazer,
se não remar contra a corrente e espreitar
desertos verdejantes da tua inevitável solidão.

No fundo, estamos ambos abandonados
à exclusão chamamos casualmente:
quotidiano.
Há qualquer coisa de fétido
entre a linha d’água e a margem…
(não se juntam dois corpos, nem dois corações)

Comunicamos, talvez, por sinais de fumo
trazidos pelo vento com réstias de outras conversas paralelas
com a única coisa que temos – um espelho.
Assim, a ondulação e as falésias preenchem vagarosamente a distância inusitada
entre as pontas dos dedos
de braços muito abertos
cheios de campos muito amplos e largos.


Se eu nadar muito, se tu correres muito,
eventualmente,
encontrar-nos-emos,
daqui a muitos anos
exaustos
de puxar os oceanos e os continentes.

Quando formos muito velhinhos
enternecidos pelo cansaço
falaremos então da nossa odisseia. 



terça-feira, 13 de maio de 2014

Para Fátima Maldonado - "Actualidades"



A água chilra e os pássaros escorrem
no entanto...
ela move-se
certeira como o dia que aconchega a noite

menos os velhos,
eles dormem às escuras do dia.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Não respire, pode respirar...




Quem disse que a vida era poesia esqueceu-se de referir que até a poesia por vezes não rima não bate não conjuga intencionalmente que pode ser feia escatológica asquerosa nojenta peganhenta mas quem não disse isto tudo não o disse de propósito.
(expira e inspira)
Foda-se!
(expira)

sexta-feira, 9 de maio de 2014

A topologia possível dum rio



As margens abertas como um livro
dançam curvilíneas atmosferas sobre as pedras esculpidas
do despentear da paisagem violenta e libertadora 
da única topologia possível 
dum rio.


terça-feira, 6 de maio de 2014

Sobre a noite e o Red House Painters

Era de vento a mão nocturna e de brancura
as tuas estrelas aladas com que ouvias o silêncio
das garças, dos gatos e dos bravos,
aqueles que em desassossego rendiam os pés
arrastados à esperança da noite
enrolados na manta do rio que limitava a vida
e a vila.




sexta-feira, 2 de maio de 2014

A Vasco Graça Moura



"no obscuro desejo

no obscuro desejo,
no incerto silêncio,
nos vagares repetidos,
na súbita canção

que nasce como a sombra
do dia agonizante,
quando empalidece
o exterior das coisas,

e quando não se sabe
se por dentro adormecem
ou vacilam, e quando
se prefere não chegar

a sabê-lo, a não ser,
pressentindo-as, ainda
um momento, na aresta
indizível do lusco-fusco."


Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"



Lamento profundamente a sua morte. Fascina-me a qualidade da sua escrita , das sublimes traduções dos clássicos maiores, a verve e o pensamento intelectual. Deixa uma obra imensa.




quinta-feira, 1 de maio de 2014

A Bica



A claridade que desafia o pó
num jogo estranho e indecifrável
no enleio de linhas infinitas, tecem-se
revolvem-se e envolvem-se, as míriades desse pó
na contraluz jogado, apenas à luz intensa se desnuda
inertes façanhas, fixa-me o olhar nessa observação
de uns instantes detido
gosto desta reveladora amálgama crepuscular
contra o opaco e o obscuro
a determinação do sopro ondulatório
da ambiguidade das ínfimas partículas
gosto de olhar muito e diluir-me no emaranhado do pó, dos dias
e depois o fluir de ti.