sexta-feira, 16 de maio de 2014

Grande



Sobressaltou-se a cal
entristeceu debaixo do casaco cor de abismo
e de tão pequenina desmaiada
o céu escuro vermelho quase preto
sem no entanto descobrir
contra a faixa azul mal pintada
onde estariam as estrelas

do cinzeiro cor do que já foi
mexeu-lhe o vento por dentro os pensamentos
até se desfazerem contra os lírios
quase murchos
cor de muitos dias

(As pequenas lagoas de laranjas
trazem dentro delas o fumo
a sombra
o som e
a saudade)

os discos e os livros e os cadernos
as memórias dentro duma caixa
a casa, o cinzeiro, as flores e até
imagine-se! – a luz acesa
tem tudo a sombra com cheiro de muitos dias

abri todas as janelas
os cortinados à espreita desvairados
contra o azul e branco
o pó e a luz como um rolo fotográfico encenando memórias
e eu, que me sentei à mesa
agasalhei-me com um casaco escuro
vermelho
quase preto
à espera da noite
à espera de mim.


Sonhámos alegres campos muito largos
com a amplitude dos braços abertos
com palavras e olhos enternecidos
tecemos o abrigo de nós

mas o que nunca ninguém disse
do inesperado silêncio caótico cheio de coisas:
a idade faz dos nossos braços coisas muito pequenas
e dos pássaros, as penas desprendem-se a cada voo.

O que fazer agora com o mundo encolhido?
tão estreito e esguio que nos braços,
outrora nossos, nascem campos alegres e sonhos largos
de outras paragens?

Note-se, não se pensa aqui de outras sombras, mas de mundos inteiros de luz,
quântica pura, universos paralelos como fragmentos de personalidades esquizóides
- nunca se tocam e não se recordam de coisa alguma,
nem de tudo, nem de nada.

Será que se abrir muito a boca
se partir dos lábios uma borboleta
ela vai poisar no teu nariz?

Sem remédio – digo eu distraída –
como quem finge acreditar na estatística…
seria talvez mais fácil morrer que viver ao largo da tua ilha…
mas o que possa fazer, honesta e francamente,
nada mais sei, ou quero fazer,
se não remar contra a corrente e espreitar
desertos verdejantes da tua inevitável solidão.

No fundo, estamos ambos abandonados
à exclusão chamamos casualmente:
quotidiano.
Há qualquer coisa de fétido
entre a linha d’água e a margem…
(não se juntam dois corpos, nem dois corações)

Comunicamos, talvez, por sinais de fumo
trazidos pelo vento com réstias de outras conversas paralelas
com a única coisa que temos – um espelho.
Assim, a ondulação e as falésias preenchem vagarosamente a distância inusitada
entre as pontas dos dedos
de braços muito abertos
cheios de campos muito amplos e largos.


Se eu nadar muito, se tu correres muito,
eventualmente,
encontrar-nos-emos,
daqui a muitos anos
exaustos
de puxar os oceanos e os continentes.

Quando formos muito velhinhos
enternecidos pelo cansaço
falaremos então da nossa odisseia. 



2 comentários:

Filipe Campos Melo disse...

É profuso o tom dos objectos
concrectos
que concretamente nos atravessam
(diariamente)

É difuso o pensamento
É confusa a amplitude dos gestos
(E os dias)

É estranho este tempo que nos faz (consecutivamente)
Vida

E o verso, o verso nunca dito
(agora escrito)

Imenso

Unknown disse...

Obrigada, caro Filipe, pelos seus enriquecedores contributos!